Debruçado na janela observava a chuva que caía e que açoitava as flores no canteiro, pobres margaridas, rosas e violetas que resistiam com firmeza o véu d’água que desabava. Os cachorros de rua abrigaram-se, os pássaros em algum galho protegido, os ratos e outros animais estariam por aí – em algum oco de árvore, em alguma toca ou até mesmo dentro das casas. A lâmpada vacilava a cada raio que iluminava o céu, o trovão ecoava com mais vigor dentro daquela moradia, pois era quieta e vazia. A solidão fazia os sons ecoarem com mais profundidade e tristeza, parecia que o eco saía do próprio peito órfão do rapaz na janela. É que ali, naquela cidade, ninguém queria saber da sua dor – é que a sua dor era meio banal perto da dor dos outros. O sofrimento só é engrandecido quando vem acompanhado de uma desgraça descomunal. Sim, sofrer de saudade era muito banal.
Mas ainda era verão e essa tempestade não iria durar mais tanto, com certeza mais uns dez minutos e tudo voltaria ao normal. E estava repleto de razão, as nuvens cansaram de chover e por trás delas um solzinho tímido conduzia seus raios pelo quintal encharcado. Rebrilhava alguma semente de esperança no coração do homem – pequena e frágil semente de mamão. O rapaz espreguiçou-se e foi até o quintal, sujou seus pés com lama. Um arremedo de sorriso perpassou os lábios frios e secos e tudo estava lindo sob a luz clara do astro-rei. Nada parecia triste e mesmo as flores despedaçadas pela chuva inspiravam certa fascinação no olhar do moço. O tempo corria e sob o vento da efemeridade, as nuvens, as flores e as dores eram diluídas incansavelmente. O homem suspirou e aproveitou aquele momento raro antes que ele também se acabasse.
- Caio Augusto Leite
sábado, 31 de dezembro de 2011
Bonança
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Com zelo, sem selo
Sob o sol quente de dezembro caminhava o carteiro, fazia as últimas entregas daquele ano. Passava pelas calçadas esburacadas e dificultosas da grande rua. No ar aquele clima de ansiedade e histeria se apossava das pessoas. Para elas o ano não poderia acabar e ao mesmo tempo o novo ano deveria chegar logo, ninguém sabia ao certo o que querer. Mas o carteiro caminhava com seu uniforme azul escuro com amarelo ovo, a roupa bem lavada e bem passada. A primeira encomenda era para Dona Zefa, a senhora de setenta anos que se não fosse pelo seu pequeno cãozinho, moraria sozinha. Passou pela casa verde, ali ele não conhecia ninguém – era o grande mistério da rua. Entregou pro Seu João, pra Marisa, pro Lucas e pra Joana. Desejava “Feliz ano novo” para cada pessoa que recebia a correspondência de suas mãos. Para aquelas que ele não encontrava em casa, deixava um pequeno cartãozinho com os mesmos votos de prosperidade para o ano que chegaria. Mais pra frente, lá pelo meio da rua, algumas crianças jogavam futebol e num chute descuidado de um dos garotos a bola voou em direção ao rapaz, este deixou a bolsa cair e muitas cartas se espalharam pelo chão. Rapidamente ele agachou-se e recolheu as preciosas cartinhas e as contas de água e luz. Levantou-se sacudiu a poeira, aprumou-se e seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido – era dedicado e orgulhoso com seu trabalho, todas as correspondências deveriam ser entregues, era seu dever.
Agora sim, parou diante da casa que estava em seu pensamento desde o momento em que havia acordado. O grande portão branco, o sobrado azul, a moradia que habita seus sonhos há tanto tempo. Retirou uma carta do próprio bolso, pois essa fora escrita por ele mesmo. Um envelope dobrado com delicadeza, a letra caprichada e o conteúdo pensado, repensado e desesperadamente reinventado. Páginas e mais páginas de papel amassadas, no lixo, no chão, em cima da cama. A noite inteira, a madrugada e finalmente a mensagem perfeita. A mão agora tremia ante o momento decisivo de colocar a carta na caixinha prateada, respirou fundo e com coragem consumou o ato. Pelo buraco do portão passou um pacotinho com a bijuteria que comprara alguns dias antes.
Já era noite quando a moça chegou do trabalho e ao ver o pequeno envelope se espantou: ninguém nunca tinha lhe mandado uma carta. Retirou, não achou selo e nem nome – leu a declaração de amor, mas não sabia que reação deveria ter, nem feliz nem triste. Nem azul, nem rosa – que cor teria agora? Pálida com certeza, branca como cera. Alguém no mundo sabia de sua existência, alguém no mundo queria seu bem, alguém que ela não sabia quem. Como era dolorosa essa sensação de ter e não ter – de saber e não saber. Pra que essa falsa ilusão? Pra que machucar o coração assim? Era muita maldade fazê-la de idiota, mas mesmo assim guardou a carta com carinho no bolso da blusa. Abriu o portão e percebeu o embrulho no chão e retirou uma fina corrente com um pequeno pingente em forma de envelope. A mulher sorriu, pois agora ela sabia quem havia lhe dedicado aqueles mimos. E enquanto a mulher entrava – o sorriso ainda na face - o seu remetente ia sentado num banco de ônibus para sua pequena casa. Seu olhar estava cansado e ainda assim feliz, pois carregava consigo a certeza de que tinha cumprido seu objetivo com perfeição. O homem nem imaginava, mas ele era o melhor carteiro da cidade.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Clara ilusão
Já estava lavando as folhas quando o cachorro latiu, “Parece que tem alguém na porteira” – ela pensou ao espiar pela janela e tentando identificar de quem era o vulto ao longe, seus olhos já não enxergavam bem. Finalmente descobriu de quem se tratava. “Se chegue seu Tomás, a porteira tá aberta” – gritou da janela. O homem curvado adentrou a propriedade e pouco tempo depois já estava na soleira da porta. “Trouxe esses peixes do ribeirão, te interessa Dona Clara?” – falou o homenzinho. “Obrigada seu Tomás, vou ficar com eles sim, quanto tá custando?”. O homem disse o preço dos peixes e Dona Clara contou as notinhas gastas e depositou na mão estendida de Tomás, no mesmo instante ele passava a sacola com os peixes embrulhados no jornal. “E esse bocado de comida, alguma comemoração?” indagou o homem ao olhar a quantidade de panelas sobre o fogão. “É sim seu Tomás, hoje meu filho que mora na cidade grande vem me visitar, mandou carta e tudo – o Padre Cláudio que leu pra mim” os olhos de Dona Clara brilhavam. “Quanto tempo não vejo seu menino, deve tá um homem já” disse Tomás nostálgico. “Tá sim seu Tomás, faz tanto tempo que não vejo meu Pedrinho, ele vai trazer os filhos e a esposa – esses eu ainda nem conheço.” “Mas nossa Dona Clara, faz bastante tempo mesmo!”. “Faz uns par de anos mesmo, mas é que da última vez os filhos e a mulher não puderam vir”. “Entendi. Bom Dona Clara, agora eu preciso ir que tem muita coisa pra fazer lá na casa do Seu Manoel, um bom dia pra Senhora, manda lembrança pro menino”. “Vai com Deus seu Tomás, mando as lembranças sim, um bom dia e bom trabalho.” O homem saiu com seu passo miúdo, cruzou a porteira e desapareceu na estrada.
Dona Clara suspirou e guardou o peixe na pequena geladeira – um dos únicos objetos elétricos da casa. Não havia lâmpadas, pois essas foram pouco a pouco queimando, e ela ainda não tinha arrumado tempo para trocá-las. Mas isso nem a incomodava, uma vez que viveu grande parte de sua vida sob a luz do lampião. Energia elétrica mesmo chegou há uns dois anos. Olhou para o relógio lascado e era mais de meio-dia. Resolveu almoçar sozinha, estava morrendo de fome. Comeu, mas não parou pra descansar, logo se levantou e foi preparar um delicioso bolo. Bateu a massa e foi varrer o quintal. Pegou a vassoura de piaçava e enquanto varria a poeira subia. Depois foi dar de comer aos dois porcos no chiqueiro. Agora iria lavar roupa, bateu as peças no tanque, torceu-as e penduro-as no varal sob o sol quente da tarde. Foi seguindo sua rotina e nada do rapaz chegar. Terminou por fim de lavar a louça, enxugou as mãos no avental e ao olhar o relógio mais uma vez o dia já alcançava sua décima sétima hora. Sentou-se na cadeira de balanço, na varanda, e ficou ali esperando o filho tardio enquanto a claridade ia rapidamente se esvaindo.
Então uma buzina rasgou o ar seco e na porteira um carro surgiu da vasta estrada. Dona Clara sorriu e se levantou rapidamente para receber quem chegava. O carro estacionou e dele saíram quatro pessoas. A senhora abraçou o filho com toda a força do seu pequeno coração gigante. Também abraçou os netinhos e a bela nora - jovem e bem vestida. As crianças ficaram brincando no quintal, os outros três entraram. Colocaram as novidades em dia, riram e choraram. Eles já haviam almoçado pela estrada, ela então decidiu botar o bolo na mesa e passar um café preto bem quentinho. Era tudo tão maravilhoso e inacreditável. Ao longe uma coruja piou e a cena desapareceu como fumaça ao vento. Dona Clara acordou assustada na sua cadeira de balanço, a noite já caíra. Os pássaros voavam para suas moradas, as galinhas cochilavam nos seus poleiros. Sapos e insetos tocavam a sinfonia noturna. Algumas lâmpadas brilhavam em casas distantes. A lua plácida e prateada pairava absoluta, as estrelas ornavam todo o imenso firmamento – eram esses os grandes companheiros de Dona Clara. Qualquer corpo celeste passou riscando a noite, a velha recostou-se na cadeira e conformada voltou para o seu sono.
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
A matriarca
Alguém entrou no quarto escuro. Era a filha mais velha que depois de tantos anos regressava para esse momento único e importante. Vestia um elegante vestido negro coberto de rendas, o cabelo num coque bem apertado, a boca pálida. Os olhos esquadrinhavam o quarto numa falsa curiosidade, como se tentassem evitar o instante em que teriam de encarar o corpo esquálido que expirava na cama bem acolchoada. Foi até a janela, abriu as cortinas e uma nesga de sol adentrou o ambiente iluminando e revelando as rugas profundas sobre o rosto da senhora ali deitada. A filha virou-se lentamente e caminhava como se o chão estivesse coberto de espinhos ou cacos de vidro. Era penoso o caminho, era sua via-crúcis particular. O sapato de salto fazia toque-toque no piso de tacos. Parecia um relógio que contava os minutos ou segundos para o grande momento. Não havia pressa, o padre já dera a extrema unção, todos que podiam já haviam se despedido – as outras filhas, as sobrinhas, os vizinhos próximos. Não havia marido para chorar, era viúva há algum tempo, não havia mais tias e nem tios de nenhum dos lados – era a matriarca absoluta da família.
Chegou enfim, ajoelhou-se na beirada da cama, a moribunda olhou e por alguns momentos não reconheceu o rosto da mulher prostrada no seu lado esquerdo – lado esse que sempre guardou uma lembrança, finalmente voltava a sua primogênita para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Para o lado pulsante da vida. As mãos se tocaram – uma enrugada e fria, a outra ainda lisa e cálida. O olhar da velha capturou o olhar da outra. As bocas de vez em quando ameaçavam emitir algum som, mas nenhuma palavra foi dita, cada uma sabia o discurso da outra e era inútil perder tempo agora. Não havia mais mágoas, não havia mais inquéritos, não havia mais dissabores. Nessa hora que antecede o passamento todos os pecados são redimidos. Nem dez minutos transcorreram e então o toque da mão se afrouxou, os olhos perderam o brilho e a boca já não falaria mais nada. A filha levantou-se, ficou ereta e decidida como uma torre negra sob o rigoroso vento do inverno. Então se moveu, tomou todas as providências – vestiu e maquiou o cadáver, preparou o velório, comprou o caixão e pagou todos os gastos do sepultamento. Ocupou a cadeira de espaldar alto que era, em outros tempos, destinada à defunta. Era assim que deveria ser, pois assim vovó dizia: “Rei morto, rei posto”.
- Caio Augusto Leite
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
Aquele bem antigo
domingo, 25 de dezembro de 2011
Feliz Natal
Já era noite da véspera de Natal. A decoração estava impecável. A árvore estava repleta de bolas, anjinhos e no topo a grande estrela de Belém. Os presentes estavam sob a tal árvore, só seriam entregues depois da meia-noite. Os pisca-piscas contornavam toda a casa, se enrolavam na velha árvore da calçada e assim destacavam a moradia que em outras épocas do ano ficava oculta pela negra noite. Os talheres ainda arrumados, as taças ainda inteiras, as crianças brincando lá fora. Todos os convidados já haviam chegado. A TV transmitia inutilmente qualquer especial de fim de ano. No céu, rojões tímidos estouravam uma hora aqui outra ali – os pequenos animais do condomínio estavam desesperados, latiam sem parar. O clima estava quente, mas uma ínfima sensação de umidade dava a impressão de que ainda choveria.
Longe de toda essa baderna natalina, no cômodo mais alto e mais afastado da casa o homem admirava a janela da pequena lavanderia. A fantasia fora colocada há algum tempo – deixara a barba postiça de lado, colocaria no grande momento. A noite foi avançando, de quando em quando uma empregada trazia algo de comer e beber. “Essa noite vou ganhar uma grana preta, só pra entregar meia dúzia de presentes” – pensou o Papai Noel com um sorriso ambicioso no rosto. “Todo Natal é assim, alguma família grã-fina me dá uns cascalhos para fazer a alegria dessas crianças idiotas”. Lá fora a chuva começou a cair, a janela ficou aberta e o piso sendo molhado sorrateiramente.
“Até que essa chuvinha refrescou, mas ainda tô com um calor danado”. Tirou do saco vermelho um presente nada ortodoxo, uma garrafa de vinho barato que ganhara de alguém. Encheu o copo e bebeu, comeu um pedaço de torta. Comia, bebia, comia, bebia, bebia, bebia, bebia. De gole em gole a garrafa ficou vazia. O cérebro foi ficando confuso e as imagens difusas. Ficou com raiva do Natal, amaldiçoou meio mundo com nomes feios. Olhou no relógio e estava tão ébrio que pensou que um dos ponteiros havia caído. Mas rapidamente constatou que faltava menos de um minuto pra hora desejada. Pegou a barba, colocou de qualquer jeito no rosto, levantou rapidamente e num passo em falso acabou escorregando na pequena poça que a chuva deixara. Sem controle do corpo caiu no varal e se enroscou todo, em desespero começou a se debater para tirar os cordões de aço que lhe marcavam a pele. No meio dessa agonia, sem ver pra onde ia, o corpo foi em direção à janela escancarada. Levou só alguns segundos para o baque final.
E então por toda a cidade, dezenas ou centenas de Papais-Noéis também estavam com suas roupas vermelhas, suas barbas longas, seus capuzes felpudos, com suas botas e com seus trenós estacionados em algum lugar. Eles surgiam dos fundos das casas, das janelas ou das garagens. Vinham com seus sininhos e com os sacos cheios de presentes. Abraçavam e beijavam as meninas, os meninos, as senhoras e os senhores. Sentaram nas cadeiras reservadas – os olhos de todos brilhavam com a falsa maravilha do lendário Bom velhinho. Feliz Natal!
sábado, 24 de dezembro de 2011
Cresça: vire homem!
Caminhava decidida, já estava no primeiro degrau da escada quando ouviu um estampido. Ficou pálida, plácida, os olhos arregalados, o pé suspenso no ar em direção à escada. O barulho viera do quarto que acabara de deixar. Ia embora ou voltava? Decidiu voltar. Abriu a porta com receio e a cama que há pouco se enfurecera com os movimentos sensuais estava agora incrivelmente parada. Parada demais, o homem agora estava de decúbito dorsal, as pernas e braços em ângulos irregulares. No ouvido direito havia um buraco escuro onde minava o sangue viscoso que escorria pelo rosto, pela barba felpuda, e se empoçava no lençol amarelado. O revólver estava caído do lado da cama.
Olhou com desespero, não poderia ser vista ali. Sabia que sendo quem era, estando onde estava, ela seria a primeira acusada pela morte do empresário. Ficou de frente para o cadáver, os olhos ainda estavam abertos, miravam o nada ou tudo. Mirava o escuro infinito da morte através das retinas sem brilho. “Como um homem rico, bonito e saudável faria uma bobagem dessas?” pensava com seus botões, “Eu tenho motivos para me matar, levo essa vida miserável, sou tocada por homens frios, ganho tão pouco, fui rejeitada pela família – o cadáver ali deveria ser eu”.
O homem nasce de uma centelha de amor ou de um momento de descuido. Cresce feliz ou com a tristeza na alma. Vira homem ou a vida o devora. Não virar homem no sentido macho da palavra – isso a natureza faz por conta - mas homem no sentido viril. Mulher tem que virar homem também, tem que ser forte, tem que ser mais que uma máquina reprodutora. Ser homem é saber viver e saber ser feliz. É claro que na vida há percalços, ali as duas personagens frente-a-frente tornavam verdade o que acabo de dizer.
A moça ouviu passos no corredor e antes que levantasse alguma suspeita, correu para a janela e com dificuldade desceu para a rua. Machucou o tornozelo e ralou a perna. Lá do segundo andar um grito de horror se espalhou. Ela foi correndo, mancando, o ferimento ardendo. Virou a primeira esquina, foi amansando o coração que estava acelerado. Agora estava um pouco mais tranquila. Entrou num barzinho qualquer, sentou no banco alto e pediu uma dose de cachaça. Tomou num único gole e a vida simplesmente me dizia: “Essa moça era frágil, mas ainda assim forte e indomável. Essa soube virar gente, soube virar homem ”.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Confissão
Versos de sudário
Poema de memória
Nem é março ainda
Indisposição
Chinelo quebrou
Mulher - s.f.
Assim eu digo
O pecador
Isto é a palavra
Presta atenção João
Coisas do homem
Eis os sinos
domingo, 11 de dezembro de 2011
A doença do doutor
Assinou a receita e despachou o último paciente do dia. Mirou com pesar os exames que pedira ao jovem que acabara de sair. Pegou-os e olhou atentamente, mais uma vez, como se pudesse estar enganado, mas parecia impossível errar – mesmo sendo um jovem médico. Aquele rapaz que parecia tão cheio de vigor iria morrer em breve e quase nada se poderia fazer. Deitava-se agora sobre o doutor a sombra da inutilidade, ao perceber que não poderia salvar vidas, não poderia salvar todas as vidas. Sentia-se como um engenheiro que vê sua grandiosa obra desabando e pondo sobre os prédios vizinhos uma camada de caliça. Deixou as radiografias de lado. Levou as mãos aos cabelos num gesto de grande frustração. Como não pensou na morte, durante todos esses anos? Como viveu feliz e alheio ao grande momento? Agora se assustava com ela, pois a via de frente – diante de seus olhos, em cada paciente, a grande ceifadora se fazia mais sólida. Grande, invariável, assexuada, indomável.
E eu, a quantos passos da morte estou? – pensou aflito – A cada dia, em cada movimento descuidado, em cada cigarro fumado passivamente, há quantos dias, horas, instantes eu estaria da definitiva morte? Essa pergunta, nunca feita, o inquietava. Olhava para os lados para ver se alguém o via, sentia pavor de pensar – mas era tão bom pensar. Devia tirar o atraso desses pensamentos mortuários, pois sempre estivera ocupado para isso. Quando criança não pensava, criança não podia pensar nisso, mas havia crianças que pensavam – viviam ou morriam isso. Quando chegou à adolescência o máximo de morte que viveu foi uma gripe forte que o impediu de ir à festa de quinze anos da garota que ele tanto gostava – mas não pensou na morte de verdade, o pensamento foi de morte em relação ao sentimento, quando soube que ela dançara com o seu maior rival no colégio. Pois é, ela me partiu o coração, mas eu sobrevivi – pensou com um triunfante tom amargo. Estudou, estudou até quase morrer, mas conseguiu, passou no vestibular numa importante faculdade – estudou por anos e anos. E mesmo tendo estudado com diversos cadáveres, nunca pensou no motivo de eles estarem ali. Enfim, se formara – estava ali no seu consultório branco, limpo, vertiginosamente limpo.
Olhou para as gavetas, abriu a primeira, tirou uma caixinha e dentro dela a aliança devolvida. Mais que uma aliança, o símbolo da sua ruína que ia pouco a pouco se fazendo dentro do seu peito, silenciosamente. A grande verdade é que se ele esquecera a morte, ela não se esquecera dele. Sentiu vontade de chorar e chorou. A lágrima quente escorria livremente e sem nenhum impedimento moral. De que adiantou todos esses anos se não valeu a pena? Se soubesse eu que o destino me reservava tão grande solidão, eu teria tomado outro caminho. Mas a escolha foi minha, arrependimentos para mim não cabem. Ingrata felicidade que não me visita mais, sorriso que não se abre mais em flor giesta. Coração que não palpita mais por olhos, bocas e movimentos sensuais. Falta-me apetite, mesmo com tanta fome – não como, não consigo engolir mais essas obrigações que a vida me oferece. O homem sentiu um sufoco na garganta, levantou-se correndo e foi até o minúsculo banheiro. Pôs pra fora o almoço fabricado, pôs pra fora as injúrias daquela mulher, pôs pra fora o vício, o ócio e tudo que ainda engasgava sua verdade. Olhou-se no espelho e as olheiras fizeram-se vivas como duas vitórias-régias no rio escuro. No seu ser a primogenitura dos tempos, a face de séculos passados, o rosto selvagem e ignorante do ser que se olha pela primeira vez no espelho do homem branco. E percebeu que naquela pele cansada se avultava a doença fatal que o consumia. Depois de se refletir e refletir sobre o seu reflexo foi que seu deu conta. A verdade é que estou doente - mortalmente doente e eu mesmo não percebi. Padecia dessa doença, essa incurável doença que chamamos de vida. De vida mal vivida.
- Caio Augusto Leite
sábado, 10 de dezembro de 2011
Bandeira, liberta meu lirismo
Quero o grito desvairado, o amor doente.
Quero a mão ferida em lepra.
Quero o beijo áspero e urgente.
O abraço tísico do poeta,
o olhar míope do velho.
O mancar subversivo de onze sílabas
na épica camoniana.
Não, eu não sou idiota.
Só um pouco cansado
desse riso brilhante de Colgate.
Eu quero fazer versos
Misturados, inversos.
Verso reverso.
normalidade
a
romper
Quero
aurora.
da
- Caio Augusto Leite
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Passionificação
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
Renovação
Retrato contemporâneo
A linha
Lirismo desmedido
domingo, 4 de dezembro de 2011
Talvez amor
sábado, 3 de dezembro de 2011
Para os leitores vertiginosos
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
Fora dos eixos
Em tudo o Eu
terça-feira, 29 de novembro de 2011
Gestação
Poemas de reflexão, subordinação e iluminação
sábado, 26 de novembro de 2011
Letroca
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Sonetando
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Consolação
domingo, 20 de novembro de 2011
Encontro onírico com Vinícius
Boom - a flor canhão
Preso ao devaneio
sábado, 19 de novembro de 2011
Saudade em dia de chuva
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Proclamação do primeiro ósculo
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
Gesso
- O gesso muito branco, as minhas linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
[pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoalhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
[recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
[mordente da pátina...
Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
As três meninas
Há muito abandonei meu lar. A casa em que passei alguns momentos de infância. Ali construí castelos, montei festinhas, tomei chá com ursos, beijei príncipes vindos de cavalo branco. Ali naquele pedaço de quintal eu vencia a solidão que me angustiava e me prendia. Sabia ser feliz – sabia muito ser feliz. Mas por motivos irrelevantes para a criança que eu era, me vi dando adeus aos sonhos que ali plantei bem do lado da laranjeira frondosa. Fui-me então, em meio a lágrimas e corações partidos, para o desconhecido. Cheguei ao novo lar, distante, apertado, pequeno para conter o meu querer. Não cabia no novo espaço todos os sonhos e nem todas as esperanças de uma criança tão inventiva como eu. Expeli de mim coisas que eu não sabia de onde vinham, mas que saíam do mais íntimo de mim - foi a minha primeira partida, puramente física.
Há pouco tempo passei pela antiga moradia e não havia mais nada. Pelo quintal tão grande, para a pequena criança de outrora, foram erguidas paredes de concreto frio. As árvores foram arrancadas, junto com meus sonhos mais puros e inocentes. Agora ali se encontravam dois grandes sobrados – era a natureza virando dinheiro – era o passado virando futuro. Meu coração doeu, minhas mãos tremeram, minha voz embargou. Ninguém tinha o direito de podar minhas memórias dessa maneira. Ninguém tinha o direito de quebrar meu coração dessa maneira. Quem ele pensa que é? Era preciso se reerguer dessa traição amarga – foi a minha segunda partida, dessa vez puramente emocional.
Hoje deixei minha casa, sob falsos pretextos, para plantar novos sonhos em terras tão distantes. Era eu querendo ser criança novamente, querendo brincar de ser feliz, brincar de conto de fadas, brincar de amar. Era eu querendo suprir as faltas que tive – Freud explica. Bati a porta de casa e fui-me, corri pelas ruas esburacadas, tomei chuva, tomei sorvete, escorreguei num barranco coberto de lama, era bom ser criança novamente. Fui criança nesse instante, pois era a última vez que poderia ser. Sequei o corpo, lavei a alma, corri de encontro à boca feliz que me engolia e me fazia outra. No abraço, no toque, no beijo molhado e então a criança deixou o medo. O tempo passou – girou num cata-vento. Era o corpo alheio um novo lar que se formava. E ali poderia plantar quantos sonhos quisesse, o solo era fértil. Ali venceria quantas guerras fossem declaradas. Essa foi minha terceira partida – de menina para mulher, deixei a boneca e fui pra vida.
domingo, 13 de novembro de 2011
Poesia de flor, mas não seria de amor?
um punhado de sementes caiu no meu poema.
Da saliva doce e ácida, brotaram flores tão formosas.
Em meus versos um jardim surgiu, lindo e forte.
E o néctar atraiu abelhas, borboletas
e do coração e das estrofes se desfez a dor.
Quem sabe o quanto viverão as flores?
Eu que não quero saber, deixo o tempo responder.
Falei tanto de flor, mas sabes que são apenas metáforas.
Toda fauna e toda flora que invoco aqui,
são só pretextos para o que quero lhe falar.
Tudo em minha lírica só quer saber do teu amar.
E disse-me um velho amigo, de terra distante,
de língua irmã e nome de gerúndio.
- É assim mesmo, caro poeta, a poesia só sabe disfarçar.
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
É contra? Conta outra
Poesia desconcreta
domingo, 6 de novembro de 2011
Corpo de poeta
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Florescendo ao amanhecer
não se pode mais chorar,
não se pode mais querer,
não se pode adoecer.
Amar então, nem pensar.
E me comparam aos felizes homens,
que são felizes por serem homens.
Triste de mim, que já não sabe quem é.
Poderia ser vida, se houvesse paz.
Poderia ser lindo, se houvesse luz.
Poderia ser grande, se houvesse chuva.
Mas me plantaram nesse solo pobre.
Eu que nunca pedi muito, rezo, imploro: polinizem-me.
Espero sem muita convicção o nascimento da flor.
Mas na fria madrugada, à espera de um ônibus qualquer,
sei que perderei a minha preciosidade.
O perfume da dama da noite ainda no ar.
Abrindo pétala a pétala
o androceu varão e fértil.
Daí virarei homem.
Beijo na estátua!
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
Vista da janela
A grande noite
domingo, 30 de outubro de 2011
Anacolutos
sábado, 29 de outubro de 2011
Histeria no Beco das Garrafas
Batiam as dez badaladas na Little Club, com uma vista privilegiada espiava o ir e vir dos boêmios tristes. Enquanto mantinha meu olhar uma figura chamou minha atenção: olhos tristes e vazios, por certo com a mente presa a algum amor partido. Seu terno, mesmo em desalinho, impunha todo seu alto nível social. Talvez morasse no Leblon ou Copacabana. Vinha com um passo caduco, cambaleante, quase caindo no primeiro dos três finos degraus da entrada. Passou gingando por entre casais, amigos exaustos e por um político e sua amante, camuflados pela escuridão da mesa onde se abrigavam.
Dirigiu-se ao garçom com meia dúzia de palavras encolhidas. Vieram em sua direção uma, duas, três doses de um líquido âmbar - conhaque provavelmente. Desviei o olhar para o palco onde lentamente começava um samba-canção. A iluminação tornou-se escassa, a exceção da luz difusa das pequenas lamparinas que cada mesa possuía, o clima nostálgico invadia cada poro dos ali presentes.
Enquanto a música chegava a seu final “me abrace simplesmente, não fale não lembre, não chore meu bem...”, um estilhaço cortou o ar. Um copo de vidro fora arremessado com violência no breve instante que me distraí. A figura fúnebre liberava toda sua raiva nos objetos ao seu alcance. O esforço que fazia tornava rubra a sua face, gotas de suor encharcavam suas vestes e os cabelos num redemoinho de confusão.
Em seu gritar gago, embriagado, ouvia-se fragmentos como: “ela vai voltar”, “ela me ama”, “eu ainda sou dela”, e outras desvairadas declarações. Subiu na mesa, seu sapato italiano evidenciou-se quando as luzes se acenderam. Olhares assustados, os casais recuaram, as risadas abafaram e a acompanhante do tal político escafedeu-se antes que levantasse alguma suspeita.
“A polícia foi chamada”, cochichou um dos garçons. Levantei-me, fui ao balcão, o bêbado ainda fazendo seu escarcéu, paguei a conta e fui em direção à Vogue, lá o clima era sempre agradável. Antes de sair lancei um último olhar de compreensão e lembrei-me do tempo em que era eu quem estava ali berrando desesperado. No caminho as sirenes coloriram os muros e as ruas de paralelepípedos. Depois da meia-noite fui para casa.
Era agora manhã, o sol invadia sem pudor as janelas que Maria deve ter aberto. Pus o pé no piso frio e do oitavo andar vi a cidade já acordada. Cerrei as persianas e me larguei na cama quente. Hoje era sábado, e o sábado era o dia sagrado de redenção para mim, para o bêbado da Little Club e para todos que aguardam o retorno da amada. Um barulho de ambulância passou e foi ficando longe, longe, longe... E antes que desaparecesse havia adormecido novamente.
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Remover
Enquanto esperava na grande fila, ereto e definitivo, o sol começava a nascer além dos prédios próximos – nuvens negras pairavam perigosamente no abismo celeste. O único som era o das pessoas que conversavam, pois se conheciam ou que conversavam pra se conhecer. Em sua mente pensamentos avulsos, desdenhosos, cansados e planos do que falar. Nada indicava a vida, parecia que as pedras frias das paredes concretadas haviam escapado e atingido os corpos humanos que ali aguardavam seu momento. Um ônibus surgiu na curva, cambaleando, cheio, transbordante. E então outro, e mais outro e diversos outros. No céu um avião pontilhava seu destino, deixando no ar um rastro de fumaça branca. Nos fios de eletricidade fitinhas de rabiola balançavam fracamente em função da brisa matinal. Mais um ônibus passava, e o espaço se movimentando acovardava o rapaz ali parado. Invertiam-se os papéis, quem era o ser vivo agora? Quem era o espaço oco? Uma triste indagação, difícil, quase impossível de se responder.
Mas ainda é verão, gosto desse tempo ameno, colorido de luz, o sol imponente. Agora eram as nuvens que se moviam, encobriam paulatinamente o calor que emanava do astro-rei. Devia ter trazido uma blusa – uma rajada forte de vento soprava e agora as fitinhas estavam ensandecidas. Devia ter ouvido mamãe e ficado em casa. Devia ter ficado dormindo até mais tarde, a cama quente. Não devia ter esquecido o guarda-chuva em cima da mesa – a chuva começava a cair – fraca, média, forte, chuva de chuveiro. Todos correram, todos abandonaram a fila. Todos foram se abrigar em algum lugar. Ele não, ele ficou ali um pouco – espaço ou pessoa? A questão emergia novamente. A porta do estabelecimento abriu-se. Acordei cedo justamente para isso, fiquei aqui, pois não sabia desistir das minhas metas. Pela primeira vez, desde que estancara ali para esperar, o jovem se moveu. Uma perna, a outra. Um passo de cada vez, tranquilo na chuva que caía. Movimento horizontal furando a cortina de água vertical. Encharcado, trêmulo, mas sempre confiante. Adentrou a porta dupla de vidro jateado. Limpei os pés no tapete, sujei o piso limpo. Encontrei quem procurava. Tocou o ombro da mulher de costas, seu olhar se encontrou com o dela. Removeria agora as pedras do caminho, poria tudo em pratos limpos. Esclareceria os maus entendidos. As pupilas dilataram; os lábios, finalmente, ganharam movimento e vida:
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
Levado por maus ventos
Folhas secas de outono.
Eu sou folha, sou seco,
sou morto e sem destino.
Sou folha pequena,
da grande árvore
sou ínfimo.
Sou menino ainda.
Sou folha de Verlaine,
de lá,
pra cá.
Pra onde o vento me levará?
domingo, 23 de outubro de 2011
O moço que conheci
Chutou uma pedrinha no caminho, e se sentiu assim como aquele pedaço de mineral. Enxotado, inútil e tratado como se não houvesse coração. E tudo por tentar se defender das agressões que por tanto tempo aceitou calado. Saberia ser forte – deveria saber – não era uma opção em todo caso. Em sua face, a marca da palma fina permanecia quente. Seus olhos permaneciam frios.
Os gritos ecoavam em sua cabeça e por um impulso decidiu voltar para resolver aquela situação. Não poderia viver assim. Com a incerteza em seu coração. Precisava consertar o sorriso que fora estilhaçado no tempo. Voltou com passos de raio. E em menos tempo do que previa chegou à frente do apartamento onde dividira aquelas infelicidades cotidianas.
Porém havia uma movimentação estranha por ali. Pessoas aglomeradas e algumas sirenes manchavam a noite escura. E manchado também estava o chão quando se aproximou e reconheceu o cadáver em suicídio (provavelmente). “Ela se matou, tinha brigado com o marido. Assim que ele saiu, se jogou” – gritava uma senhora apavorada. Em sua mente permitiu-se corrigi-la: “ela havia morrido no momento que decidiu fazer das nossas vidas um calvário”. Podia soar estranho um homem sofrer nas mãos da mulher, mas era isso que acontecia e toda sua passividade era a causa disso.
E por mais que tenha vivido com ela tanto tempo, não rolou sequer uma lágrima de caridade. Virou o rosto e caminhou com um sorriso enorme no rosto. Podia parecer maligno ou até mesmo satânico. Mas era amor próprio mesmo. Não chorou a morte dela e não choraria em nenhum momento futuro. A morte ajustou-se para que sua felicidade fosse consumada. E assim seria.
Tirou um cigarro do bolso e acendeu-o com displicência. A chuva começou a lavar as calçadas enquanto as pessoas dispersavam-se para seus lares. O sangue chegava a seus pés e com um gesto de asco seguiu na direção oposta. Iria para um hotel barato e esperaria a herança que dela viria. Pensava consigo que estava agindo certo. Estava completamente confiante que poderia ser feliz dali em diante. Esqueceria aquele passado – esqueceria não, já havia esquecido.
Continuou a caminhar pelas ruas cheias de poças, com a roupa molhada e a alma livre. O homem seguiu em frente e as olheiras aos poucos pareciam apagar-se de seu rosto. Apertou-se no agasalho com um pouco de tremedeira. Era pura chama em seu corpo e eterno riso em sua íris. Assim desapareceu na cidade escura e nunca mais o vi.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Obituário pré-morte
“- Está morto – disse.
E de fato estava, quem matou foi a palavra”.
É preciso que se esclareça que não sou um Brás Cubas da vida – e nem posso ter pretensão de o ser, Machado sabe disso – sou mesmo um narrador vivo e de carne e letras. Pretendo com esse texto confessional acabar com os clichês que irão se instaurar depois do canto do cisne. É muita injustiça não poder rebater as opiniões leigas das pessoas que vêm ao meu último adeus. Não vou deixar elas sem resposta, não vou deixar que me pintem como um diabo e nem que me glorifiquem como um anjo de candura. Vou aqui me desvendar – mas como narrador que sou não terei a neutralidade necessária para convencer a todos, irei tentar.
Olha, não sei como e nem quando vai ser o momento mais propício para a leitura dessas linhas, mas fiquem sabendo desde já que eu não era tão bom assim. É isso mesmo, não era o doce de pessoa que vão dizer que eu era, não era tão caridoso, não era assim amigável, não era feliz. Mas também não era o contrário disso. Era um pouco de cada, mas nada definido, nada que se possa definir com totalidade. Tive sonhos? Quem não os teve? Tive amores? Aos milhares. Tive vontades que não realizei, tive fomes que não matei, tive doenças que não curei. Não era muito ambicioso, mas tolo também não era – acho que esse meio termo foi o que me matou – que me matará, aliás.
Caros leitores (homens e mulheres) sei que se leram até aqui, estarão duvidando se me conheceram de verdade. Mas se nem eu me conheci e nem eu podia me autodominar, como é que vocês aí de fora da minha consciência poderiam o fazer? Fiquem tranquilos amigos do peito, vocês me fizeram menos triste, vocês me compreenderam bem, vocês foram os que mais se aproximaram de descobrir quem eu fui.
Não chora não meus amigos, não chora não. Tô bem melhor aqui, onde quer que seja o aqui. Não chora Zeca e lembre-se dos meus conselhos – creio eu que eram bons. Não chora Maria, lembre-se dos meus beijos – creio eu quero eram bons. Não chora Flora e Macabéa gostei de lê-las, vou poder encontrá-las, vou virar palavra também. Não chore ninguém, fiquem todos em paz, fiquem todos bem, fiquem todos consolados. Ah, mas que momento dolorido aonde a carne vai se desrrealizando e o conto vai virando crônica banal...
e a crônica barata vai virando poesia.
Vai virando versos de despedida.
É a hora da estrela, diria clara, Clarice.
E eu só queria uma fita amarela
para colocar no meu moinho.
É doce naufragar nesse mar - diria um poeta.
Acabou a serenata e todos os clichês de morte
foram mortos pela palavra. Descansei em paz.
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
In natura
Vênus
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
Eu vi gatos
terça-feira, 11 de outubro de 2011
Baile triste
bela dama de negro.
Baila tristeza
antiga dama francesa.
Baila que é teu o salão,
inevitável rodopiar.
Baila ao som sem compasso
dos acordes em meu coração.
Baila tristeza,
fecha a ferida dolente.
Baila e faça da saudade
chama silente.
Baila tristeza
que o tempo permite.
Baila tristeza
e esqueça que foi triste.
- Caio Augusto Leite
sábado, 8 de outubro de 2011
Meu par
é pois que o fundo não mais vê.
E quando tentares em vão me revelar
em negativos me faço e nada saberá.
Quando puderes e quiseres é só cantar,
eu como pássaro das matas
e apreciador das belas vozes
te seguirei por onde fores.
Quando não mais sonhar - fecha os olhos
e que sejam minhas mãos a te acordar.
Belos sonhos irão nascer
e neles somente dois: eu - você.
Quando em vão tentar voar
é aí que me terá demais.
Pois todo o coração envolto estará
e em tuas ações para sempre o verbo meamar.
- Caio Augusto Leite
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Relapso
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Eu vi a morte
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
O poeta que não viu o mar
terça-feira, 27 de setembro de 2011
Estático na janela
domingo, 25 de setembro de 2011
Meu eu girassol
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
Vaso novo, vaso velho: flores reticentes.
O rapaz jovem tentava se concentrar no texto que lia na tela luminosa de seu computador. A barba por fazer e os olhos atentos refletiam na luzinha que a máquina emitia para o leitor. A boca fechada e quase seca – passou a língua em volta dos lábios rosados, ajeitou o cabelo e franziu as sobrancelhas. Um barulho de tempestade anunciando-se atrapalhava a leitura. De repente – apenas por uso de expressão – a eletricidade acabou. E no breu imenso ficou o rapaz atônito.
Sem ter nada o que fazer decidiu ir observar da janela a chuva grossa que estava começando. Do décimo segundo andar do prédio ele avistava a grande cidade padecendo ante a força da natureza. Grandes enxurradas levavam o lixo acumulado nas calçadas e entupiam as boca de lobo. Algumas pessoas de guarda-chuva andavam menos apressadas, outras sem nada corriam para procurar abrigo. Uns enfiaram-se nas marquises próximas, outras se apinharam nos botecos que havia na região.
Um helicóptero rondava a enchente que se desenhava leve e pulsante no asfalto “deve ser o Datena” pensou o rapaz ao lembrar-se do programa que era exibido na televisão “será que ainda passa o programa dele?” se deu conta o rapaz que fazia muito tempo que não ligava a televisão do pequeno apartamento: a internet supria todas as suas necessidades e quando estava com tempo livre ia até um dos bares que nesse momento estava perigando encher-se da água barrenta da chuva.
Desviou o olhar da vidraça e percebeu a escuridão que se abatera dentro da habitação – foi atrás de lanternas, velas ou qualquer coisa que o ajudasse a caminhar sem bater os joelhos nas quinas dos móveis. Chegou com algum custo à cozinha e abrindo as gavetas achou um pacote de velas de parafina. Tirou do bolso um isqueiro que carregava por hábito – o fumo já não fazia mais parte dos seus vícios. Foi aos poucos iluminando o ambiente e a luz trêmula da chama dava uma sensação estranha ao dono do apartamento.
E ao piscar os olhos para discernir o que as velas iluminavam foi percebendo coisas que jamais havia visto por ali. Misteriosamente as coisas começaram a mudar – as cadeiras e a mesa de ferro foram ganhando uma cor amarronzada e sem mais nem menos eram feitas de madeira. A geladeira foi ficando menor e azulada, o micro-ondas era uma torradeira. Até um vaso de cristal apareceu em lugar do de plástico, com flores grandes e perfumadas em oposição as artificiais que ali estavam. Correu com a vela na mão – sem entender o risco do fogo em suas mãos – chegou à sala e a Televisão era diferente, com botões grandes e tela arredondada, o computador era uma máquina de escrever e o aparelho de som uma vitrola (os CDs viraram LPs). Não entendia o que estava acontecendo, correu ao quarto a cama era de casal e os móveis ficaram mais antigos também.
Em desespero e já muito aflito corria o moço, corria como que tentando escapar dessa ilusão – um medo percorria o corpo. Sentia frio, sentia sede, sentia o rosto arder - por isso dirigiu-se até o banheiro para poder lavar a face em fogo. Quando seu rosto mirou o espelho sujo, sob a luz da chama, viu no reflexo a moldura exata do olhar paterno: era ele agora a própria imagem do seu genitor. Assustado esmurrou o reflexo e os cacos de vidro afundaram em sua mão – que carregava uma aliança de casamento (aquela que seu pai recebera de sua mãe no altar). Em vertigem entrou na banheira e quando ligou o chuveiro o ralo parecia engoli-lo...
Um trovão mais forte e o rapaz acordou “foi um pesadelo!” pensou quando despertou e viu que a chuva estava mais fraca e a rua completamente alagada. E ao lembrar-se do que se passara foi aos poucos entendendo. A vida passando e levando tantas coisas não conseguia destruir a essência intrínseca a tudo que existe. Tal qual o CD carregava dentro de si a imagem espectral do LP de outrora, o seu corpo (como o de todos os seres) carregava também uma marca interna de sua própria descendência. Passado não poderia ser modificado, por mais que nós tentemos camuflar com plástico, metal e roupas novas – “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais” o que mudou foi o discurso da máquina, o cheiro da flor e o pote da geleia. Disso ele – tal qual uma mulher há tantos anos – também soube, no primário da noite.
- Caio Augusto Leite